O Lobo e A Flor

Inspirado pelo que testemunhei e, na ausência de algum outro escrito que conte uma história exatamente igual a essa, decidi escrever este conto, tão real quanto me é possível dizer. Sei que não são poucas as histórias de lobos e flores por aí, mas essa é diferente. Tão diferente quanto seus protagonistas e seus detalhes.
Certo dia um lobo perdeu-se de sua matilha. Ele não era um lobo comum. Era o mais fraco e o mais desajeitado. Sua forma de pensar não condizia com a forma como os lobos pensam. Seus hábitos eram diferentes dos outros e, por isso, ele sempre era esquecido ou menosprezado pelos seus companheiros. Sua vida limitava-se em tentar encaixar-se naquele grupo ao qual ele pertencia e correr atrás deles quando eles o deixavam para trás. Até que um dia, cansado, ele adormeceu à beira de um rio e, ao abrir os olhos, encontrou-se sozinho. Em seu íntimo, ele sempre soube que essa palavra o definia – sozinho - mas ele nunca quis acreditar; pois amava e confiava nos demais lobos (apesar de tudo o que faziam com ele). Ele entendia que eles o tratavam diferente por que ele era estranho, mas imaginou que um dia eles encontrariam beleza em suas peculiaridades e então passariam a amá-lo e respeitá-lo também. Ele sabia que era esquecido por que, no fundo, não tinha graça e nem utilidade para aqueles outros seres que tinham hábitos e pensamentos tão diferentes dos dele. Ele não os julgava como lobos maus, mas também não entendia o porquê de estar sempre sozinho. “O que há de errado comigo, afinal?” ele perguntava-se exaustivamente.
E a solidão mudou o Lobo. Ele, que sempre foi o mais sensível, amistoso e carinhoso animal da floresta, começou a se tornar tão feroz, impulsivo e agressivo quanto os outros eram. Sua estranha dieta a base de frutas, ervas e vegetais deu lugar a uma dieta carnívora. Aprendeu a caçar e a enfrentar os demais seres da floresta com suas unhas e dentes. Deixou de lado os seus ideais e agia apenas por sua sobrevivência e autopreservação. A empatia deu lugar ao egoísmo. Agia, enfim, como um lobo deveria agir.
Então um dia, vagando despreocupado pela floresta após uma apetitosa refeição (um pobre cervo inocente), o Lobo encontrou uma flor. Uma estranha Flor. Ela era pequena, com pétalas disformes, um odor agradável e um olhar cativante. Encantado pela imagem de tão peculiar flor, o lobo se aproximou.
- Hey! Por favor, não faça nenhum mal a mim. Seu tamanho me assusta e eu sou só uma flor. – Disse a pequena Flor, com uma voz tão encantadora quanto sua beleza.
- Desculpe, eu não quis te assustar. – Retrucou o Lobo. – Eu só quero me aproximar de você.
- Não faça isso. Apesar da minha aparência frágil, eu tenho espinhos que vão te machucar!
O olhar do Lobo entristeceu. A Flor, gentil, lhe sorriu em resposta. Ele então sentou-se e a encarou por um tempo. O silêncio dos dois foi quebrado pela Flor, que perguntou ao Lobo por que ele a encarava tanto. O Lobo respondeu que estava encantado com sua beleza e formosura.
- Achei que ninguém gostasse de flores como eu. Sou diferente, estranha. Todos pensam que sou venenosa ou perigosa, e talvez eu seja mesmo – Disse a Flor, com um tom de voz triste e um olhar cabisbaixo – além de ser muito frágil, é claro.
- Eu não tenho medo de você. – O Lobo respondeu oferecendo um sorriso acolhedor para a pequena Flor. – E não acho você frágil. Acho você gentil e eu só consigo ver bondade em seus olhos. O fato de você ser diferente é o que mais me encanta.
E então o Lobo e a Flor ficaram horas conversando sobre suas vidas, seus hábitos peculiares e suas diferenças em relação aos demais lobos ou às demais flores. Cada minuto que passava fazia com que eles se sentissem mais idênticos um ao outro. Era evidente que aquelas duas almas estavam predestinadas a se encontrarem e a formarem um par. Eles não nasceram para pertencer a matilhas ou jardins, mas sim um ao outro. Quando o sono começou a tomar conta de ambos, o Lobo despediu-se da Flor com a promessa de que voltaria no dia seguinte.
A partir daquele encontro, todos os dias o Lobo voltava lá para vê-la. E todo dia o Lobo arriscava-se a dar um passo mais próximo da pequena Flor. Ele sentia o medo dela a cada centímetro de aproximação, mas não sabia se esse medo era pelo risco de machucá-lo ou pelo dano que ele podia causar a ela. A Flor já havia sofrido demais e tinha medo de que o Lobo só estava agindo daquela forma para conquistá-la e depois machucá-la ou abandoná-la, exatamente como outros animais fizeram antes. Principalmente depois das confissões do Lobo sobre sua mudança de personalidade. Mas as intenções do Lobo eram boas e sinceras.
A relação dos dois foi ficando mais forte a cada dia. O Lobo, inconscientemente, foi voltando aos seus hábitos antigos e fazia de tudo para cuidar da pequena Flor. Durante as tempestades, ele a envolvia com o seu corpo (com todo o cuidado para não tocar nela, como prometido) e quando qualquer inseto ou animal se aproximava dela, ele os colocava para correr. No começo a Flor achava engraçada a preocupação e o cuidado do Lobo por ela. Depois, com o tempo, ela começou a se sentir incomodada e, com todo o cuidado do mundo, pediu que o Lobo parasse de tratá-la assim. Afirmou que queria ser livre, assim como queria que ele fosse.
- Mas você pode se machucar. – Argumentou o Lobo.
- Não tem problema, querido. – Retrucou a Flor. – A vida não é perfeita e às vezes vamos nos machucar mesmo. Faz parte e, se não fossem as feridas que eu carrego, não teríamos nos aproximado e cultivado nossa amizade.
O Lobo acatou ao pedido da Flor e, apesar de estar sempre preocupado com ela, distanciou-se e passou a cuidar dela de longe, pronto para agir caso algo a ameaçasse. Até que uma forte tempestade de ventos e raios assombrou a floresta e o Lobo, pressentindo o perigo, correu para proteger a sua Flor. Quando chegou até ela, percebeu que estava aflita, com medo de que os ventos a levassem embora - o seu olhar, úmido pelas lágrimas de pânico, pedia socorro. O Lobo não hesitou em cobri-la com o seu corpo para protegê-la. Para acalmá-la, ele repetia, como um mantra:
- Não se preocupe, eu estou aqui. Eu estou com você!
A tempestade passou logo depois. A Flor sentiu uma dor na sua folha quebrada pelo forte abraço protetor, mas o pior foi quando o Lobo, ao levantar-se, deixou algumas manchas de sangue no chão. A Flor assustou-se e notou que ele estava machucado.
- Você não devia ter feito isso! Olha só para você, está machucado! E é por minha causa!
- Não se preocupe, minha flor. Não fiz isso por você, fiz por mim. Se eu não me machucasse, correria o risco de te perder. Já fui solitário uma vez e não gosto do que me tornei quando isso aconteceu.
- Mas você nunca mais estará sozinho, querido. Não podemos nos aproximar mais, então, sempre que quiser estar junto a mim, é só conversar comigo. Você sabe que estarei sempre aqui e, se eu tiver que partir um dia, converse com as lembranças que conseguir guardar de mim. As boas, claro. De más, bastam essas cicatrizes que eu deixarei em você, mesmo sem querer.
- A vida não é perfeita e às vezes vamos nos machucar mesmo, lembra? Como você disse, faz parte e, se não fossem essas feridas, eu não teria tido o prazer de te abraçar, pelo menos uma vez. A lembrança do calor desse abraço vai me aquecer nos dias frios e terei você para sempre guardada em meu coração, ainda que em forma de cicatriz.
Mais dias se passaram. O Lobo e a Flor viviam intensamente essa estranha relação, na qual um não podia tocar o outro. Eram livres, mas nunca abandonaram um ao outro. Apesar de serem tão diferentes fisicamente e possuírem personalidades às vezes conflitantes, eram peculiarmente idênticos na alma, na essência. Eram dois estranhos seres que nasceram bons e com a convivência com outros acabaram se tornando ruins, até que se encontraram e recuperaram aquilo que os faziam ser tão diferentes dos demais. O Lobo adorava contar suas histórias de aventuras pela floresta, mas adorava ainda mais ouvir as histórias que a Flor contava, do que ela observava vivendo parada ali, sempre naquele mesmo lugar. O Lobo era nitidamente apaixonado pela Flor, mas ela nunca deixara claro os seus sentimentos por ele. Talvez por medo de que ele tentasse se aproximar demais dela ou pelo trauma de confiar demais em outros seres e depois se decepcionar. Pode ser que ela realmente gostasse do Lobo e sentisse um carinho especial por ele, mas não o amava tanto a ponto de correr riscos. Ou ela ainda não tivesse notado a profundidade do que sentia. Também pode ser que ela só o amava como um bom amigo, uma agradável companhia. De fato, não sei. Mas admirava muito o jeito espontâneo do Lobo, em contraste com o jeito moderado da Flor. Mesmo na primavera, com tantas flores bonitas e charmosas pela floresta, o Lobo só pensava naquela estranha figura. Quando os beija-flores vinham tocar os lábios dela, ele morria de ciúmes e seu instinto até cogitava espantá-los, mas então lembrava-se do pedido da Flor, respirava fundo e sabia que, quando os beija-flores fossem embora, era com ele que ela conversaria.
Então, um rigoroso inverno chegou repentinamente. O Lobo, que estava aquecido envolto em seu próprio corpo, acabou dormindo mais do que o habitual e, quando alongou o corpo para espantar a preguiça, percebeu o ambiente descolorido à sua volta. Flocos de neve cobriam os macios pelos do seu corpo e a paisagem estava começando a se tornar uma mistura de preto, branco e tons de cinza. Ele correu até sua Flor para ver como ela reagira à mudança de temperatura, mas, ao encontrar-se com ela, deparou-se com uma Flor envelhecida, pálida e sem vida. Suas finas pétalas não foram suficientes para salvá-la do frio e o Lobo não estava lá para aquecê-la com seu calor. Ele foi até ela, com lágrimas nos olhos e uivou, como se a chamasse para mais um de seus diálogos habituais. Quando uma lágrima do Lobo caiu sobre ela, eu tive a impressão de vê-la sorrir pela última vez.
O Lobo chorou por dias seguidos a perda de sua companheira. Daquele dia em diante a vida dele nunca mais foi a mesma. A floresta parecia um lugar sem graça e sem cor, mesmo quando a primavera seguinte chegou. O sensível Lobo só se recuperou quando lembrou de sua cicatriz e então, sempre que chegava a hora de conversar com sua amada (ou quando achava necessário falar com alguém), uivava. Não para a lua, nem para as estrelas ou para outros lobos, mas sim para suas memórias. Era uma conversa dele com ele mesmo, com a Flor que ainda existia dentro dele - ou melhor, no coração dele. Nos invernos, era a lembrança do único abraço que dera nela que o aquecia (e lembrar dele valia a pena, agora que a cicatriz já não doía mais). Essas conversas e lembranças eram a motivação para que ele nunca mais voltasse a ser o lobo que ele detestava ser e se mantivesse como aquele que ele realmente é – e, no fundo, nunca deixou de ser.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Num Passe de Mágica

The Call of Goddess

Aqui Não Tem Carnaval