Macieira


No vai e vem do cotidiano a gente não para pra ver o que tem em volta, exceto quando o “em volta” para a gente. Assim como a maçã interrompeu Newton enquanto ele estudava tranquilamente embaixo de uma macieira, certo dia eu estava entre os vultos e corpos sem rostos de São Paulo quando vi uma Macieira dando frutos em meio ao concreto sólido e frio. Fazia tempo que eu não via uma maçã a não ser em um notebook ou smartphone, mas ali estava - bem em frente aos meus olhos - não apenas uma maçã, mas toda uma macieira frondosa e fértil esperando que alguém a notasse e usufruísse de seus frutos. Há quanto tempo esta árvore estava ali e ninguém a viu?

Não importava para qual sentido você estava indo ou voltando, aquela estranha árvore parecia estar sempre na contramão, carregada de frutos vermelhos. Tão vermelhos que pareciam até vivos, como órgãos de um corpo em meio às máquinas.

Minha fome e o encanto da árvore me levaram a pedir-lhe uma maçã.

- Conte-me uma história e eu lhe darei quantas maçãs quiser.

Contei-lhe uma primeira história simples e recebi um agradecimento acompanhado de um fruto que era tão bom que até me pareceu ser algo proibido, tal qual aquele com o qual Eva deliciou-se ao dar a primeira mordida. Um impulso tomou conta de mim e quis contar outras muitas histórias, tanto banais quanto secretas. Gastei horas com aquela árvore que parecia me aninhar com seus galhos enquanto eu me abria como uma flor que desabrocha na primavera.

Esqueci da hora e tive que me despedir da Macieira às pressas. Logo eu era mais um vulto cinza no meio da cidade. Porém, eu sabia que algo mudara em mim desde o encontro com a árvore que mais parecia uma miragem. Era como se uma semente tivesse sido plantada secretamente em mim.

Pouco tempo depois, soube que a árvore seria derrubada por estar atrapalhando o fluxo. Não aceitei, tentei impedir que isso acontecesse, mas eu era a única pessoa indignada com isso e, portanto, não fui ouvida nem atendida. Eu era uma macieira em meio ao tráfego.

De qualquer forma, sinto que meu encontro com a árvore foi um privilégio. Além dos frutos deliciosos, agora consigo ser silêncio onde só há ruídos e observo melhor os vultos a ponto de ver alguns rostos entre eles. Será que algum dia estes rostos se tornarão novas macieiras? Sinto que agora coro novamente, que tenho vida e cor como nunca antes. Será que sou, agora, fruto do fruto que me semeou?

Tornei-me, enfim, uma Macieira?

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