Mistério
Mesmo com o céu nublado e cinza, eu senti que deveria ir à praia.
Chegando lá, senti-me um pouco atordoado com tamanha vastidão. Olhei fixamente para o horizonte e tentei achar o ponto de união entre o céu e o mar – pois me incomoda pensar que dois infinitos jamais se tocam. É preciso ter um ponto de convergência. É como o passado e o futuro, que se tocam sutilmente no presente. Ou como a vida e a morte, que possuem em comum o último suspiro.
Caminhei à beira-mar coletando conchas e pensando no quanto tudo isso é finito. A vida é finita, a matéria é finita, as relações são finitas... Talvez até o tempo e o universo sejam finitos e nós só não saibamos disso ainda por que o fim de tudo está além da nossa compreensão. Somos apenas pequenos grãos de toda essa extensão de areia. Mas e se existisse algo além do fim? E se alguém fosse capaz de superar o fim do tempo, o fim da vida, o fim da própria matéria e do universo? E se nós fossemos como conchas que permanecem inteiras mesmo quando a vida que lhes habita se esvai? Quantas histórias poderíamos contar sobre as pessoas, os momentos e a vida como um todo? Quantas respostas obteríamos sobre o que está em nós e além de nós?
O mar. Ele veio ao meu encontro e, como uma sereia, chamou meu olhar para si. Vi as ondas cumprindo sua rotina. Elas nascem profundas e imponentes, mas acabam rasas e acovardadas. Se a coragem das ondas não fosse censurada, não haveria nada sobre a terra pois seríamos invadidos e dominados por elas. Pobres ondas... De natureza devastadora a mera recreação dos surfistas e banhistas. Olho para a única surfista que se diverte e se arrisca entre as ondas. A admiro. Ela me nota e vem ao meu encontro. Recebo-a com simpatia e elogio sua coragem em zombar das ondas, o que lhe soa divertido. Ela se apresenta e eu faço o mesmo.
Correndo o risco de ser confundido com um louco, eu compartilho com ela os meus pensamentos sobre o mar e as ondas. Ela fica em silêncio olhando ora para mim, ora para o mar. Percebo a estranheza da situação e me silencio, olhando para o mar.
- Ele é complicado. Tem dias que é um sonho no qual você pode caminhar confiante e se divertir. Mas tem dias que ele age como um pesadelo. É quando ele te seduz com grandes ondas para surfar, mas ao entrar, você percebe que ele está tentando te devorar a todo custo. Você nada e percebe que seu esforço é em vão por que a correnteza te quer em outra direção. Você grita por socorro e ninguém te ouve. Você sente o vazio e sente a morte por todos os lados. Você quer alguém ao seu lado pra te dar a mão. Mas ele não te oferece nada além de água e sal.
Silêncio.
- Ele é como o tempo, né?
Ela sorri.
- Talvez. Mas acho que meu avô ali pode te falar melhor sobre o mar e sobre o tempo.
Olho para onde ela aponta e vejo um senhor – um homem bem velho de barba branca, costas curvadas, roupas surradas e um físico que costumava ser atlético e rígido, até a gravidade e o tempo decidirem agir sobre ele. Ela acena para o estranho homem que olha fixamente para nós mas não responde. Algo na imagem estática daquele velho me causa arrepios. Ao lado dele, um outro homem, de aparência um pouco mais jovem – mas por volta de seus 50 ou 60 anos – conversa distraído com outras pessoas.
- Ele foi marinheiro e conta histórias fantásticas sobre o mar e sobre a terra. É um verdadeiro contador de histórias e lendas. Adoro as histórias sobre tesouros mágicos escondidos em lugares secretos, como elixires do amor e artefatos que podem transformar gente em pedra – os olhos dela brilham ao falar do avô que permanece apático aos acenos da garota.
Ela decide falar com ele e pede que eu cuide da prancha dela. Pergunto se posso pegar umas ondas e ela diz que eu devo.
A água gelada do mar quase me faz mudar de ideia, mas insisto. Após algumas braçadas, me encontro na área onde as ondas começam a se formar. Olho para a praia e não vejo areia, não vejo gente, só vejo o que está além da praia, como as casas e o morro. O sentimento de vazio me causa pânico. Onde está a menina? Onde está seu avô? Onde estão todas as pessoas que estavam na praia? Pra onde foi toda a vida que estava ali? Sinto um pequeno movimento. É uma onda se formando atrás de mim. Me alio a ela para que me devolva à praia e à garota em segurança. Dou umas braçadas, pego o embalo e, num impulso, fico de pé na prancha. A sensação é indescritível. É como se eu acabasse de dominar um pesadelo ou vencesse uma insônia. Eu vejo a praia, as pessoas, os prédios, a ciclovia com seus ciclistas e os castelos de areia construídos pelo casal de crianças na beira do mar. Surfo mais um pouco, até ver a garota voltando para a beira do mar. Vou ao seu encontro.
Devolvo a prancha a ela e conto sobre a minha experiência no mar. Ela acha divertido e conta sobre a conversa que teve com o avô. Ele está cansado e disse que precisa voltar para casa. Ela estava preocupada, por que ele parecia sempre cansado e queixando-se da vida, embora não tivesse nenhum problema de saúde. Segundo ela, ele já viveu muita coisa e nada mais o surpreendia. Perder sua amada foi o começo do seu desânimo em relação a vida pois, a partir de então, não tinha mais ninguém para acompanhá-lo em suas viagens, nem alguém que se interessasse e acreditasse em suas histórias. Para ele, não valia a pena viver se não tivesse alguém com quem pudesse conversar sobre suas experiências. Escrever e ter suas histórias lidas não era a mesma coisa: ele queria o brilho nos olhos, o concordar com a cabeça, a curiosidade viva e expressada no rosto de alguém.
No meio da conversa, tropecei no que eu jurava ser a raiz de uma árvore. A garota riu e me segurou para que eu não caísse. Levantei-me e reparei que a tal raiz era vermelha e de aspecto emborrachado. Olhei para o lado e vi que se tratava da raiz inflável de uma enorme árvore vermelha com bolas verdes no topo, representando as folhas. O vendedor de infláveis fitou-me acusador. Pedi desculpas e ele voltou sua atenção para o casal de crianças que lhe gritava aos ouvidos. A menina queria comprar a bexiga de coração, mas o menino insistiu que eles não deveriam comprar nada. O vendedor tentava convencê-los a parar de brigar e a levar uma bexiga para cada.
Logo depois surgiu, do outro lado da árvore (entre a árvore e o mar), o homem que estava ao lado do avô da garota. Ao me ver, fechou a cara e falou bravo com ela, como se estivéssemos fazendo algo de muito errado. Sem me dar muita bola, chamou-a para ir embora e desapareceu atrás da grande árvore inflável. Minha parceira de surfe ficou sem graça e identificou o homem como sendo seu pai. Despedi-me, mas ela disse que ainda tinha um tempinho até o seu pai arrumar as coisas. Tive a leve impressão de que ela estava se insinuando para mim. Pouco tempo depois convidou-me para sair e eu me vi na obrigação de ser sincero com ela. Eu havia gostado da companhia dela, não queria que as coisas ficassem estranhas entre nós. Deixei claro que, apesar de estar solteiro, não era de mulheres que eu gostava. Nem de homens. Meu interesse é puramente pela vida e pelo que é infinito. Ela riu, desconcertada, e eu também. Abaixei para pegar a prancha e vi algo de estranho na areia. Era como uma pedra grande de formato estranho. Tentei puxá-la, mas não obtive sucesso. Comecei a limpar a área em volta do estranho objeto e fui descobrindo que era como uma caixa aberta. A garota também ficou intrigada e me ajudou a cavar. Começamos a perceber que o objeto estranho não era uma pedra, nem uma caixa, mas sim um carrinho de mina – aqueles que os mineiros usam para transportar carga. Cavamos mais (estávamos encobertos pela árvore inflável à nossa direita, pelo mar às nossas costas e por uma pedra relativamente grande à nossa frente). Descobrimos todo o carrinho e eu fui além: rastejei pela areia a fim de encontrar um trilho que o justificasse. Logo o encontrei. O segui até a pedra que, como percebemos, era a entrada para algum lugar. Perguntei a ela se toparia uma aventura dessa vez em terra firme e ela assentiu.
Demoramos um pouco para entender como abrir a passagem pela pedra. Tentamos apalpá-la, cavar um pouco mais..., mas nada adiantava. Tive a ideia de conectar o carrinho ao trilho e empurrá-lo até a entrada. Deu certo! A parte escura da pedra se abriu e o carrinho desceu pedra adentro. Eu e ela o seguimos.
O lugar recém-descoberto parecia uma mina. A luz que vinha da praia era suficiente para iluminar boa parte do longo corredor em que nos encontrávamos. Fomos seguindo nosso caminho empurrando o carrinho pelo trilho. O ambiente era escuro, estreito e úmido. As paredes eram de metal negro. Eu não consegui esconder minha empolgação com tamanha aventura – minha vida sempre fora tediosa e sem grandes emoções até agora. Eu finalmente tinha algo fantástico para contar para alguém, quando houvesse um alguém. Tomei a dianteira na exploração do lugar. O carrinho abriu mais uma passagem e o corredor se estendeu por mais alguns metros. Ela estava preocupada com o que seu pai pensaria e deve ter me dito algo sobre voltar para avisá-lo, mas eu estava tão concentrado que não ouvi nada. Fui seguindo o trilho com o carrinho até que ele bateu em uma parede – e uma passagem à direita, sem trilhos, se abriu. Entrei correndo no novo ambiente e deparei-me com três paredes escuras. Olhei em volta e nada de novo apareceu. Eu entrei em desespero. Minha aventura não poderia acabar em um cubículo de metal. Aquele lugar tinha que ter algo a mais para me oferecer. Depois de tanta expectativa, eu não poderia voltar à minha vida tediosa sem nenhuma descoberta relevante para contar. Senti vontade de chorar e, com raiva, soquei e chutei todas as paredes.
Uma delas se abriu e eu entrei num novo ambiente com uma escada em espiral. Consegui finalmente respirar aliviado e subi degrau por degrau como se cada um deles fosse uma onda sob os meus pés. Eu senti que estava finalmente dominando o mistério.
O andar de cima era imenso. E velho. E com aspecto de uma velha mansão invadida pela fúria do mar. Havia areia, algas, conchas e cheiro de mar em todo o lugar. As paredes negras de metal deram lugar ao concreto amarelado. Eu me senti numa casa-grande do período colonial. Olhei em volta e imaginei quantas histórias devem ter sido vividas ali. À minha frente estava a porta escancarada para uma cozinha enorme e derrotada. O corredor levava a vários aposentos guardados por portas azuis. Ah! Se por detrás de algumas dessas portas houver uma biblioteca cheia de livros... Eu não saio mais daqui.
Antes de explorar os vários aposentos que se estendiam à minha direita, decidi explorar o lado esquerdo do corredor, no qual encontrava-se apenas uma espécie de pátio, por onde entrava a tímida luz do fim de tarde. Uma luz de quase noite. Entrei nesse pátio e reparei em alguns aspectos macabros. As várias plantas do local estavam mortas e secas. As colunas sujas e emboloradas. Em alguns pontos do estranho ambiente haviam correntes de ferro penduradas em estruturas que lembram araras de pendurar roupas. Senti um forte interesse por esse lugar. Olhei para as colunas e tentei decifrar em que ano foram feitas. E os pisos de azulejo, o que me diziam sobre o ex-proprietário daquele estranho lugar? As correntes... Por que estavam ali? Que estranho interesse elas despertavam em mim.
De repente notei que não estava mais sozinho. Num susto, olhei para a frente e vi a assustadora imagem do velho avô da garota da praia. Ele estava mais torto do que antes e me olhava com olhos ainda mais fixos. Arrepiei-me por inteiro. Por um instante achei que ele fosse apenas uma assombração ou uma ilusão provocada pela luz, mas não – ele era real. E como que percebendo meu desejo de fugir dali, correu atrás de mim como um leão caçador avança até sua presa. Que vitalidade aquele velho tinha! Fugi dele o quanto pude. Lhe atirei correntes a fim de retardá-lo ou derrubá-lo, mas ele conseguia livrar-se delas como um lobo astuto. Perdi o fôlego, senti um medo como nunca sentira antes. Onde está aquele desgraçado? Tentei recuperar o fôlego enquanto o procurava, mas já era tarde demais. Seu braço forte e vigoroso cercou o meu pescoço e num único golpe, me fez seu prisioneiro. Tentar escapar teria sido em vão então fiz o que qualquer pessoa na minha situação faria: perguntei o porquê. Por que eu? Por que aquele lugar? Por que agora? Já que não seria possível fugir, então que eu obtivesse algumas respostas antes de cumprir o meu destino.
- Eu não aguento mais essa maldição. Eu quero morrer como qualquer outro! Foi aqui que tudo começou e agora ela é sua! Fique com ela e me deixe descansar em paz!
Fomos tomados por chamas. Eu e o velho, abraçados e em chamas. Uma experiência de quase morte. Instantes depois, ele me agradeceu, pediu desculpas e virou pó. Meu corpo, agora livre, ainda ardia.
O susto passou e eu caí de joelhos. Ninguém acreditará quando eu contar. Será que entendi direito? Fui à cozinha velha e tudo foi esclarecido com a ajuda de uma faca enferrujada. Eu sou o infinito! Sou a vida! Não sou nem mar, nem céu, sou horizonte. Não tenho um porquê, apenas sou o que sou. Sou livre e tenho correntes. Sou velho numa aventura nova e jovem numa casa velha. Não sei de quase nada, nem conheço muitas histórias, mas neste corredor imenso no qual estou existe sim uma biblioteca com incontáveis livros com as mais diversas histórias que eu poderei ler no seu devido tempo. Melhor ainda: viverei todos os tipos de aventuras e fantasias. Mas não me apressem!, pois sou o tempo em si. E não quero limites impostos pela matéria, pois sou universo e os desconheço. Eu sou a concha que fica para dizer que alguém já viveu aqui. Sou o sonho e o mistério. Não sou o escritor nem as palavras, sou a história. E como história, sou eterno.
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