O Par Perdido

Eu perdi o par do meu sapato.
Sabe quando você espera o ano todo por aquele momento de abrir os presentes do seu aniversário e quando esse momento chega... Você descobre que lhe deram aquele par de sapatos que eram do jeito como você queria? Aqueles sapatos que te atraíram desde que você os viu na vitrine e decidiu prová-los. Percebeu então que, além de atraentes, os sapatos também serviam no seu pé. Mais do que isso: eram do tamanho ideal e ainda por cima confortáveis de se usar.
No começo você os usava para tudo: para ir à faculdade, para ir para a balada dançar, para fazer compras, assistir um filme no cinema... Até em casa você não conseguia tirá-los dos seus pés.
Foi exatamente assim que tudo começou com o sapato que perdi.
Mas então vieram as consequências de seu uso contínuo: os sapatos se desgastaram. A sola já estava roída, havia buracos onde eles não deveriam estar e até os nós firmes dos cadarços que sempre foram como braços que abraçavam os meus pés se afrouxaram e desmanchavam-se em poucas passadas. O tênis sempre tão bonito foi ficando sujo. Talvez nem tanto quanto você deve estar imaginando agora, mas ao olhar para os tênis dos meus amigos, tão novos, tão lindos, com cadarços tão agarrados a eles que eu não conseguia mais ver o meu tênis como ele realmente era. Ele já tinha cumprido o seu propósito e estava na hora de trocar de par.
Hoje eu abri o meu armário e decidi que chegara a hora de arrumar as tantas caixas de sapato que nele se amontoavam aos montes. Peguei meus sapatos confortáveis e os separei dos meus sapatos bonitos. Doei aqueles que não me serviam mais e tentei fazer um “bem bolado” apertando o cadarço daqueles que são maiores do que os meus pés. Nada resolveu. Eu já estava desistindo da tarefa de vestir os meus pés descalços quando encontrei a caixa do tênis esquecido e perdido. Senti pena dos meus pés, especialmente o esquerdo, por que nunca mais eles saberão como é usar sapatos como aquele. Meu pé olha para os cadarços murchos como flores no outono e os cutuca com a ponta dos dedos para ver se eles o abraçam novamente. Nada acontece. Olho para aquele sapato que sobrou e deixo uma lágrima contida nos meus olhos escorrer por toda a extensão do meu rosto, até marcar a lateral do tênis com uma pequena mancha mais escura que logo secará.
Um tênis sem par não tem muita utilidade. É como uma história contada pela metade, uma ideia não planejada ou uma poesia não escrita. É como a lembrança, que revive algo sem trazê-lo de volta. É como o encanto dos tênis que estão na vitrine que não tem o seu número. É como uma pessoa que tem muito a compartilhar, mas não tem ninguém para lhe ouvir ou que escreve um pequeno conto como esse sem ninguém para lê-lo. É como um pé que caminha sozinho, descalço, no meio da cidade grande ou do metrô lotado.
Talvez um dia eu vá às compras de novo e encontre outro sapato como esse, mas hoje não. Hoje eu quero ficar com ele. Ou melhor, com o que restou dele. Quero lembrar de cada passo que demos juntos. Quero lembrar por quantos lugares incríveis nós já passamos e de cada momento que ele dividiu comigo, mesmo quando eu não o tenha notado. Quero, antes de guardá-lo de novo na caixa do esquecimento, que ficará no fundo do meu armário preenchido com tantas outras caixas fúteis, agradecer por ele ter protegido os meus pés. Por ter se desgastado sem nunca me causar nenhuma bolha ou mau cheiro, preservando a maciez e a suavidade da minha pele, mesmo nos caminhos mais difíceis, nos buracos e cacos pelos quais passamos. Quero guardá-lo mesmo sem seu par, para que eu nunca mais me esqueça que mesmo com as mudanças causadas pelo tempo, um bom tênis nunca deixa de ser um bom tênis. Basta olharmos para ele com os mesmos olhos que o viram na vitrine.
Agradeço, fecho a caixa e reorganizo o meu armário. Sigo em frente, por ora, descalço.

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